domingo, 21 de março de 2010


O SUMIÇO DO MATADOR


Naquele fim de tarde quente e abafado o esquecimento principiava a se abater sobre o misterioso sumiço do matador Leopardo, goleador que maravilhava a galera com sua arrancada, com dribles estonteantes e gols de placa. O talento fora reconhecido pelos olheiros e a sonhada transferência para um grande clube, estava sendo ultimada. Em breve, seria convocado como salvação da seleção carente de craques fora de série.

No aguardo do negócio, afiançado por um empresário caçador de novos talentos, ansiando pelo contrato milionário que lhe fora proposto, e com a glória dos aplausos nos grandes estádios lotados de torcedores e admiradores, costumava fazer ponto no Bar do Sardinha, estabelecimento escuro e encardido de propriedade do português que lhe emprestava o nome e passava o dia limpando o balcão, com um pedaço de pano sujo. A voz estridente e carregada de sotaque luso ecoava ao instruir os seus ajudantes, dois inexperientes garçons, que se revezavam entre a minúscula cozinha e o salão, servindo sem pressa os pedidos dos fregueses, sempre os mesmos. Mais ao fundo, onde se via uma velha gravura reproduzindo cenas de incêndio na floresta, pendurada na parede, postavam-se os jogadores de dominó, entretidos, horas a fio, em bater as pedras na mesa e gritar, tanto nas vitórias quanto nas derrotas. Apostavam pequenas importâncias ou o pagamento do consumo, invariavelmente cerveja quente e tira-gosto.

Outros tipos formavam pequenas rodas ou se isolavam. Juca Poeta pedia duas doses de cachaça, mantinha acalorados debates filosóficos e existenciais com um ser invisível e se debruçava sobre pedaços de papel pardo, produzindo sonetos, com letras trêmulas e irregulares, que declamava em voz alta. Velho Ananias, fisionomia cansada, preferia o tosco banco junto ao balcão. Deixava a bengala ao lado, sorria com os poucos dentes que lhe restavam e relatava impossíveis aventuras noturnas, quando viajava em direção às estrelas jovens da nebulosa de Órion, a convite dos tripulantes de um esplêndido disco voador.

Às vezes entrava um menino de rua, esticava o olhar guloso em direção às vasilhas de comestíveis, recebia um torresmo esturricado seguido do grito “fora, rua, fedelho”.

O Bar do Sardinha era democrático e liberal, permitindo que todos se expressassem livremente, embora fossem poucos os que se dispunham a ouvir a conversa que vagava, solta, sobre receitas de medicamentos caseiros indicados na ocorrência de bronquite, náusea ou pedra nos rins, brigas entre vizinhanças por causa de arruaças de crianças ou alguma notícia fresca - crimes ou escândalos - e que ganhava novas cores nas bocas que temperavam os fatos, condimentando-os com apimentados acréscimos de informações.

Foi no momento em que Juca Poeta discursava sobre as fontes da inspiração na criatividade poética que apareceu o forasteiro. Entrou célere, ar arrogante, sem saudar os fregueses. Disse, de pronto, que era repórter e averiguava, para uma matéria especial que preparava, a vida pregressa do craque Leopardo, revelado nas divisões inferiores do Campeão Futebol Clube, agremiação local que já exportara muitos futebolistas para o exterior, alguns deles atuando com destaque em clubes da Espanha, França, Turquia, Japão e México.

As investigações realizadas indicavam que os últimos vestígios da presença do jogador, às vésperas de sua transferência, desandavam naquele estabelecimento e ele se dirigira para lá na expectativa de ouvir eventuais amigos e parceiros, pois acreditava tratar-se de caso de vingança, de assassinato e ocultação de cadáver. Ou mesmo de sequestro, considerando que Leopardo receberia uma gorda bolada, transformando-se, repentinamente, em milionário.

Houve silêncio e espanto, o jogo de dominó ficou interrompido, os fregueses, desconfiados, trancaram suas bocas. Segredos e intimidades, embora circulassem pelo recinto, não atravessavam as paredes nem chegavam aos ouvidos de estranhos. Súbito, Velho Ananias pigarreou, bateu a bengala no balcão e, com vagar, disse que se dispunha a revelar o mistério, que era tempo de relatar os fatos e pôr ponto final à enigmática questão.

Os homens se entreolharam, inquietos, sinal de desaprovação, temerosos de sofrerem consequências, serem chamados pela polícia, perderem tempo em exaustivos interrogatórios. Indiferente, resoluto, Velho Ananias explicou que o atacante Leopardo, grande artilheiro, não havia fugido para lugar incerto e não sabido com a finalidade de se livrar da fúria de algum marido ciumento, furioso com o sucesso do jogador que colecionava conquistas amorosas sem se importar com o estado civil da mulher, tivesse ela ou não companheiros. Afinal, não tinha culpa de despertar desejo, pois sua fama de garanhão chegava a superar a de goleador. Ele encaçapava de todas as maneiras, sabia encontrar, com facilidade, o caminho de todos os gols. Também não era verdadeira a suspeita de que pudesse ter sido assassinado ou mesmo sequestrado, caso em que não haveria pagamento de resgate por absoluta insuficiência de recursos dos familiares, que não recebiam ajuda do profissional da bola, mesmo porque ainda não havia recebido os dólares acertados para a assinatura do contrato.

A voz rouca e arrastada do Velho Ananias alertou para a veracidade do relato que se seguiria, verdade que ele abonava sob juramento, pois presenciara, ao longo da existência, coisas espantosas, inusitadas, “com a nitidez refulgente da luz do sol e os olhos arregalados pelo medo”. Antes de prosseguir, fez breve pausa, tateou as mãos sobre o balcão, segurou o copo que se encontrava à sua frente, levou-o à boca e bebeu a dose de cachaça de uma só talagada, reservando algumas gotas para homenagear os santos padroeiros. Depois, arrotou e retomou a prosa para detalhar os acontecimentos.

Confessou, diante da platéia atarantada, que fora o último vivente a se avistar com o craque Leopardo que, no seu entender, era melhor que Romário ou Ronaldinho, reunindo a categoria de Pelé e Garrincha. Disse que o vira, eufórico, riso escancarado iluminando o rosto, preparando-se para as entrevistas que concederia aos jornalistas de todo o país, orgulhoso com o fato de aparecer na mídia, manchete de primeira página dos jornais, destaque nos noticiários da tevê, além de ser paparicado e festejado, uma espécie de herói nacional, de salvador da pátria. Mas, ao vê-lo, contrariando seus hábitos efusivos, cumprimentou-o um tanto friamente, dizendo que tinha um encontro urgente, coisas relacionadas ao esporte, tinha de partir com urgência, reunião secreta, política de dirigentes que se preocupavam com suas imagens desgastadas com seguidas denúncias de trambicagens.

Velho Ananias balançou a cabeça, respirou profundamente e segredou que o matador Leopardo, num espanto súbito, como se tivesse avistado uma linda loira com cabelos de raios de sol, mudou o rumo de seus passos, despediu-se bruscamente, e caminhou ligeiro em direção ao mar, atraído por um ponto de luz que ganhava intensidade. A última visão foi a de um objeto luminoso que se elevou do oceano e riscou o céu na forma de um relâmpago.

Terminado o relato, arrependido pelas confidências, quedou-se em silêncio, nada mais respondendo, por mais que o jornalista insistisse. Quando o intruso se afastou, Velho Ananias foi questionado por Juca Poeta, que afirmou não compreender como ele, merecedor de respeito e consideração pela idade avançada, poderia ter acompanhado as cenas finais do sumiço do atacante Leopardo sendo cego de nascença.

-------------------------------------------------------------------------------------
*Guido Fidelis é jornalista e escritor.
-------------------------------------------------------------------------------------